quarta-feira, 26 de setembro de 2007

É faca na carteira... E nada na caveira!



Se precisasse definir o Brasil numa frase, diria que é o país do perdão. O país da anistia ampla, geral e irrestrita. Anistia que, em lei aprovada pelo governo Figueiredo, não somente livrou a cara dos perseguidos pela ditadura entre 1964 e 1979, mas que também abriu as asas da liberdade aos perseguidores e criminosos "oficiais". Neste país de consciência livre, estupradores, torturadores e assassinos jogam peteca na praia de Copacabana e curtem sua tranqüila aposentadoria. Depois de encher os bolsos, mandar bater e lotear estatais por duas décadas com sobrinhos com dificuldade de aprendizado, os milicos têm a vida que pediram a Opus Dei.

O Brasil, e isso costuma chocar mais nossos companheiros latino-americanos do que a nós mesmos, é o país mais atrasado do continente quando se fala em punir os responsáveis pelos abusos cometidos pelo regime militar. Pa ra o bem da "paz e harmonia nacionais", o governo e a sociedade preguiçosa abaixam as orelhas e deixam pra lá. No país da anistia, tudo é perdoado com esquecimento. O que aconteceudeixa de ter acontecido, como se a roda da história se alimentasse de si mesma, num processo autofágico e irreversível.
O custo dessa amnésia tão simpática e conveniente é alto. Esse déficit moral faz com que o brasileiro aceite a idéia de tortura e violência policial como quem come um pastel de carne moída.

Escrevo esses parágrafos, como vocês devem imaginar, movido pela experiência de assistir à pré-estréia de "Tropa de Elite", na última quinta-feira, no Odeon (Blá, blá, blá, eu fujo do assunto mesmo e daí...)
(Quase um parágrafo de "suspense" depois...) Poderia entrar no mérito exclusivo do filme e dizer que é impecável no que se propõe e que, apesar (e por causa) da pirataria, será um sucesso de bilheteria estrondoso. Ainda poderia escrever que "Tropa de Elite" na maior parte do tempo parece um institucional nauseante do Bope - no final, só faltou o "Aliste-se já!". Apesar disso, levanta algumas lebres, dá um par de tiros certeiros e deixa pelo menos uma cena na memória - aquela do policial Matias invadindo uma passeata pela paz na PUC.
Ao mesmo tempo, o filme é de um reacionarismo que talvez não tenha paralelos na história do cinema nacional. O texto é claro como pó de mármore: o tráfico de drogas é um câncer, a elite branca é hipócrita, a PM é corrupta, e o Bope é incorruptível. Só o Bope, através de seus imaculados princípios, nos salvará das trvas. E para isso, tem certas lincenças nada poéticas - a tortura é a principal delas. Eles, que são puros, fazem o serviço sujo que nós, hipócritas de classe média, não encaramos. A lógica que "Tropa de Elite" reproduz é cristalina.
(Agora, vamos ao que importa...) O problema começa quando esse monstro disforme chamado opnião pública faz uma leitura do filme que corrobora esses métodos e valores. E aí, "Tropa de Elite" pode perigosamente entrar para a história como o filme da geração "Cansei". O público torc pelo herói torturador e mata com ele, tortura com le em repetidas cenas à la Abu Ghraib - ou "Guantanamo no Rio de Janeiro", como disse meu amigo Daniel Alarcón. As celebridades enfiadas em black-tie aplaudem cada porrada, num frisson de adrenalina, e todos se convertem instantaneamente em perfumados torturadores de gabinete. Depois, é claro, sabe-se que vem o perdão, nossa querida e mui conhecida anistia, para o torturador assassino justiceiro e para nós, apêndices conexos dessa violência, como diz a lei número 6.683. Porque, para o bem da "paz e harmonia nacionais", os fins justificarão os meios até o (nosso) fim. Enquanto isso, o pastel de carne moída segue descendo bem pela goela de todos. O uísquinho servido em coquetéis de estréia como a de "Tropa de Elite" pode ajudar.

(João Paulo Cuenca, Revista Megazine, do jornal O Globo de 25/09/07, página 9, Sobretudo)

Cuenca, obrigado por sintetizar tudo que sinto em relação a esse filme em um texto.